terça-feira, 29 de janeiro de 2008

7. aqui e agora (breve história de uma ponte no pôr-do-sol)


aqui o céu é mais azul e as nuvens reflectem com maior exactidão a paleta de cores que tão bem caracteriza o pôr-do-sol.
aqui há sempre quem parte e quem chega. quem tem de despedir-se daquele ente querido (muitas vezes para sempre) e quem vê a sua metade de si voltar a casa depois de mais um dia de luta, uma batalha campal com fim suposto para por alturas da terceira idade...
neste meio-gás de luz, nesta semi-claridade, os objectos adquirem um contorno disforme, uma definição menos definida. a ameaça de ausência de luz proporciona uma sensação de quase nevoeiro, um esbatimento das características indeléveis de todas as coisas, independentemente do seu tamanho. como uma ponte, por exemplo. esta ponte. esta maravilha da mente humana que permite ligar dois pontos outrora impassíveis de ser ligados.
esta ponte como símbolo da viagem de ida e de regresso, por lazer ou obrigação. esta ponte como símbolo do vazio, onde tantos passam e ninguém fica. esta mesma ponte na qual muito poucos reparam, mas que torna a vida bem mais fácil a mais que muitos.
esta ponte que, ao atravessar este rio neste pôr-do-sol, se esbate, perde por momentos a pose e permite-se descansar da rigidez com que encara a sua função de ponte.
os seus contornos tornam-se consideravelmente menos definidos, fenómeno absolutamente proporcional à quantidade de luz que persiste na estratosfera...
aqui, onde o céu é mais azul e as núvens menos, conduz-se em frente, porque atrás vem gente...

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

6. rot(in)a


a tarde estava soalheira e fria. o inverno fazia-se notar mais pela temperatura do que propriamente pelo aspecto do dia. desde o romper da alvorada que o sol sorria para quem o quisesse receber. mas com o sol vieram também o vento e as baixas temperaturas.
apetecia algo quente e acolhedor. um local onde nos sentíssemos quase como em casa, com vantagens acrescidas. um aconchego fora do aconchego habitual. um conforto menos monótono do que o que nos conforta todos os dias e todas as noites e todos os dias que se seguem às noites. uma sensação de querer ficar num local que, apesar de nos ser estranho, se entranhou em nós como um viciante vício.
chegámos e apoderámo-nos do local como se desde sempre pertencesse à nossa árvore genealógica. um espaço que nos é caro, porque sim. sem grandes porquês, sem explicações metafísicas. um local que nos prende pela simplicidade e pela grandeza com que nos acolhe.
o frio e o vento ficam lá fora. o sol, esse vai espreitando pelos telhados de vidro, que aqui não se atiram pedras.
um réptil de ferro no fundo da sala traz-nos aquilo que normalmente o sol nos traz no verão: calor. faminta, reclama comida de quando em quando. há sempre uma alma que a vai alimentando, para gáudio de todos.
para culminar, a piéce de resistence, um bule a fumegar. um aroma inebriante, uma boca que saliva, um corpo que pede calor por dentro.
não sei o que mais me encanta: se o chá, se o ritual em si...

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

5. heaven on earth


há paisagens únicas.
lugares que queremos guardar na retina até ao fim dos nossos dias.
recantos perdidos neste nosso mundo sempre cada vez mais atarefado, cada vez mais distante do seu verdadeiro e genuino 'eu'.
há paisagens que nos deixam quase sem palavras. que nos proporcionam um prazer visual tão grande que queremos rasgar o peito e abarcá-las e nunca mais as perder do coração. ou dos olhos do coração. paisagens tão singulares que, por mais kilómetros que façamos, nunca vamos encontrar nada semelhante. locais onde o céu é mais bonito, onde o sol brilha mais forte, onde as núvens são mais poéticas, a chuva uma melhor companhia para a melancolia... cenários quase irreais, de tão perfeitos...
este é um desses locais.
este edifício situado aos pés da albufeira permite-nos um posto de observação ímpar. através dos vidros claros como ar, podemos perder-nos na contemplação de tamanha beleza. tornamo-nos semideuses. ficamos preenchidos com toda a magnificência do que nos rodeia. o diafragma dos olhos fotografa tudo ao pormenor para que, posteriormente, quando a beleza já não for algo presente, possamos deixar-nos invadir pela memória destes espaços e, por momentos, imaginar-nos de novo aqui...
fecho os olhos.
estou onde eu quero estar.
estou neste mesmo local, com esta imensidão de água e de natureza à minha frente, esta paisagem assoberbante, esta imersão na serenidade imposta pelo ambiente que me rodeia...

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

4. paisagem fugidia


um por-do-sol funciona como um nevoeiro.
a cada minuto que passa, as cores que dele advêm alteram-se, levando por arrasto tudo o que estiver ao alcance do nosso olhar.
à medida que os amarelos vão dando lugar aos laranjas, os laranjas aos vermelhos, os vermelhos aos violetas, os violetas aos azuis, os azuis aos negros, toda a nossa perspectiva do que nos rodeia se altera.
as coisas adquirem cores de fogo, para no minuto seguinte se pintarem de noite. e assim se mantêm até ser dia de novo.
os contornos esbatem-se, as formas deixam de ter formas claras e precisas. tudo se torna uma imensa massa amorfa, indefinida. a única definição definitiva das coisas é a indefinição que adquirem.
as árvores e as plantas e as pedras e as terras adquirem por breves instantes uma coloração de fogo, um fogo que não arde, que apenas banha tudo aquilo que alcança. um manto de cores quentes que vai mudando de intensidade com o percorrer do fim de tarde.
'a lua, dizem os ingleses, é feita de queijo amarelo'.
o por-do-sol, digo eu, é um arco-íris em câmara lenta...

domingo, 13 de janeiro de 2008

3. the small red balls that grow on the ground


«por aqui, por favor.
este é o caminho de que vos falei.
peço-vos para terem o maior cuidado possível para não pisarem estas bolas vermelhas que vêem no chão. estas bolas são a razão que me levou a trazer-vos cá.
depois de várias investigações, conseguiram descobrir como aparecem estas misteriosas esferas neste chão.
é isso mesmo: é um milagre.
não há qualquer justificação científica para a ocorrência.
aliás, pensa-se que estas esferas se encontram aqui todos os anos, provavelmente para um ritual ou de desova ou de auto-comiseração, ainda não há certezas. de qualquer forma, os habitantes das redondezas já se familiarizaram com elas e até começam a introduzi-las na sua gastronomia tradicional.
aparecem em bandos e quando começam a surgir as primeiras ainda demoram alguns dias até se formar um grupo considerável. são absolutamente inofensivas, acreditando-se mesmo que provocam um efeito panaceico nos humanos.
o facto de como se deslocam é ainda um mistério, visto não estarem munidas de quaisquer meios de locomoção. a sua cor avermelhada faz com que se destaquem facilmente da pobreza cromática circundante.
se preferirem podem tocar-lhes, não mordem nem têm qualquer reacção inteligível.
se fizerem o favor de acompanhar-me, passaremos ao próximo caminho, em que veremos uns cilindros castanhos altamente irregulares a que alguns peritos denominaram de 'troncos'... escolhem cada palavra tão científica!...»

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

2. natureza viva com cais


cais.
ponto de partidas e de chegadas, ponto de passagem, ancora_douro.
imóvel, estático, existe um convite à viagem, com ou sem regresso.
os cais anseiam desesperadamente ser utilizados. ter movimentos de embarcações que vêm e que vão. gente com sorrisos e gente com lágrimas.
um cais é uma ponte em potência. é um aeroporto rodeado de água.
é uma forma de contacto entre o real e o etéreo, o impalpável. o que nos foge por entre os dedos...
'mesmo uma viagem de dez mil quilómetros começa com o primeiro passo'... ou o primeiro remo a tocar a água. ou os primeiros sons do rosnar do motor de uma qualquer embarcação...
olho para a imagem e vejo um cefalópode.
um ser que com os seus tentáculos vai (re)conhecendo a realidade que o rodeia.
uma cabeça que com os seus membros explora o mundo exterior, entra em contacto directo com este, comunica através do tacto.
e esta ponte, esta espécie de purgatório, de limbo, de não-lugar... este quase cais.
cais. ponto de chegadas e de partidas...

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

1. génese




uma e meia da manhã de uma daquelas noites em que quase chegamos a ver o sol nascer.
é neste preciso local que tudo começa. que tudo ganha forma.
o engenho e a arte permitem-nos expressar-nos sem palavras, apenas imagens, aleatórias, comuns, menos comuns, sucessos, fracassos, sucessos de novo...
tudo é fruto de alguma outra coisa. tudo começa e tudo acaba, para dar lugar a outra coisa ainda. 'essa coisa é que é linda'...
aqui fechado nestas quatro paredes não vejo passar o tempo. de longe a longe, oiço o ponteiro dos segundos a reclamar um pouco de atenção. resisto a todo o custo fazer-lhe a vontade. mas eventualmente acabo sempre por fazê-lo...

uma e meia da manhã de uma madrugada em tudo igual às outras, ou seja, em tudo diferente.
como pode haver duas noites iguais, se não há iguais duas gotas de água?
sou a minha própria luz. ilumino-me a mim próprio. revelo-me fragmentos que já passei e que quis prender com ambas as mãos, enjaular e manter como um animal perigoso, encarcerar na enxovia mais profunda e esquecer onde está a chave...
aos poucos, devagar, delicadamente, sabiamente, a alvura de uma folha outrora branca fica contaminada.
aqui, agora, neste local, ficarão registados os momentos que queria trazer comigo, que anseava ter para os exibir como o tesouro mais precioso.


o homem idealiza, a objectiva dispara, a fotografia nasce.