domingo, 5 de fevereiro de 2017

20. regresso ao nada


Conduzimos durante horas a fio, sem destino previamente determinado. A tarde caminhava a passos largos rumo à escuridão da noite. A estrada escolhida incluía percursos sinuosos e solitários monte acima, monte abaixo e novo monte acima. Lentamente, instalava-se um denso nevoeiro que tornava a paisagem um enorme nada enevoado e húmido. 
Nas terras mais altas a paisagem estava coberta de um manto branco frio como a neve. Apenas se reconheciam os dois longos trilhos feitos pelos poucos carros que anteriormente fizeram o mesmo percurso. 
- Pára, por favor. Quero sair.
- Aqui? No meio de nada?
- Aqui. Exactamente aqui.
Saí do carro e afastei-me sem olhar para trás. Senti-me compelido a experimentar este mesmo percurso pessoalmente. A fazer um terceiro trilho onde ainda não existia mais nenhum. À minha frente, apenas o vazio, a grande mancha de nada que engolia toda a paisagem por onde languidamente se espreguiçava. 
Por breves segundos, talvez um minuto ou dois, estava ali, imóvel, longe de tudo, rodeado de uma provável beleza envolta por aquele manto frio e húmido. Por alguns segundos, talvez um minuto ou dois, senti-me parte desse potencial todo. Olhei o indefinido de frente, absolutamente determinado a enfrentá-lo com todas as forças que tenho. Abracei o frio da neve que me rodeava, no chão, no topo das árvores, no tejadilho do carro. 
Desapareci por segundos, não mais que um minuto ou dois. O suficiente para ser um só com o nevoeiro e a noite que caíam ao mesmo ritmo.
Um clarão despertou-me da letargia, e outro logo a seguir fez-me olhar para trás. Os faróis do carro trouxeram-me de volta à realidade.
Conduzimos durante horas a fio, com o destino muito claro no nosso pensamento.

[foto de Vasco Moody]

quinta-feira, 13 de maio de 2010

19. passos e compassos



















o fim de tarde de meia estação estava frio e o sol que se derretia no mar convidava a uma caminhada pela areia molhada da praia.
os passos marcados na areia molhada são migalhas que os pássaros (ou as ondas) comem. são percursos irrepetíveis e duram apenas até à onda mais forte seguinte. formam dois caminhos paralelos, que eventualmente se cruzarão ou não, conforme a vontade de quem os imprime.
inquilinas habituais destas paragens, as gaivotas estariam decerto entretidas, talvez à procura da parca refeição do dia, um peixe menos ágil ou algo similar.
os responsáveis pelas pegadas nem se apercebem da sua existência. simplesmente fazem o seu percurso, pé ante pé, sem entender verdadeiramente a dimensão deste seu gesto. avançam de forma assertiva e sem olhar para trás, porque sabem que estas marcas que deixam depressa deixarão de existir...
estes são caminhos que se querem paralelos e intercruzados por muito tempo!...

sexta-feira, 9 de abril de 2010

18. o mundo de pernas para o ar



















este mundo anda de pernas para o ar.
de repente, deixa-nos sem casa, sem roupa, sem cama, sem esperança.
faz-nos sentir pendurados de cabeça para baixo, presos por algo intangível e frágil. e, obviamente, de cabeça para baixo deixamos cair muito mais ideias e pensamos menos bem.
e se às vezes conseguimos chegar aos pés e soltar o fio que nos prende, caímos em solo incerto, ou em areias movediças, ou em carvão incandescente. parece sempre preferível a estabilidade da fragilidade do fio à incerteza do que encontraremos se soltos dele.

este mundo, repito, anda de pernas para o ar.
as estações do ano andam todas muito confusas. este cantinho à beira-mar plantado, sempre muito ameno, mas sempre com as estações do ano bem definidas, tem agora dias de verão em pleno inverno, tem dias de temporal no meio do verão, a primavera e o outono deixaram de ter aquele meio-termo característico da passagem do frio para o calor e vice-versa.

este mundo, reitero, anda de pernas para o ar.
lembro-me como se fosse hoje: em pequeno, as notícias que davam na televisão não eram todas negativas. havia sempre algo que nos fazia sorrir, viajar, imaginar, deambular. havia sempre algo que nos aquecia o coração ou que nos fazia ter vontade de estar em algum sítio especial, algum tesouro perdido neste vasto planeta. mas isso era dantes. agora tudo o que vemos na televisão são desgraças, a maior parte delas completamente irrelevantes para o comum mortal/espectador. o sensacionalismo vende como nunca. as notícias são exploradas até ao limite, ou mesmo ultrapassando-o. quanto mais sangue e morbidez tiver uma notícia, mais tempo de antena tem.
ou isso ou o maldito futebol. chega a ter honras de notícia de abertura, e muito mais frequentemente do que o razoável. realmente não gosto de futebol, mas o meu gosto pessoal não vem ao caso. não consigo entender que pertinência tem um resultado de um jogo qualquer, muito menos que seja a primeira notícia a ser difundida e a chegar ao lar de milhões de espectadores. e não adianta mudar de canal, porque todos fazem o mesmo.

este mundo anda de pernas para o ar, já tinha dito?
deixou de haver respeito e entreajuda pelo próximo. neste momento, as pessoas só querem saber do próximo se for para assumir uma atitude de superioridade para com esse próximo. 'eu sou melhor do que tu, visto-me melhor do tu, tenho um carro e um computador e um telemóvel e uma casa melhores do que os teus, e só descanso quando estiveres na lama e eu te passar o meu sapato por cima'. todos têm algo a dizer sobre a vida do próximo, sobre o modo de ser, de estar, de pensar, de sentir, de amar. até a liberdade de escolha do próximo é colocada em causa, porque o próximo não é livre de escolher quem ama, com quem se relaciona, quem são os seus amigos. ou pelo menos todos tentam controlar estas suas escolhas.

este mundo, concluo, anda de pernas para o ar...

sexta-feira, 19 de março de 2010

17. regresso?

















MUITA água correu desde a última actualização desta página...
encontros e desencontros, em quase dois anos de ausência.
a minha vontade em manter esta página activa continua forte, mas sempre fui um péssimo gestor do meu tempo e por isso este projecto acaba sempre por sofrer as consequências disso mesmo.
Para já, o formato mantém-se. um tira as fotos, outro escreve os textos. até quando, é uma incógnita, como tudo na vida.
para já, aqui fica uma foto tirada já em 2007, em Madrid, que me agrada muito pela simplicidade e pelo arrastamento da água, este elemento que por onde passa nada resiste...

bem-vind@s de volta às comsequências.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

16. intervalo

com_sequências premeditadas


















ausências imprevistas.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

15. memórias



desde o dia em que nascemos até ao dia em que morremos, tod@s nós somos pouco mais do que esponjas. absorvemos imagens, sons, palavras, conceitos, significados, pessoas, sentimentos, leis, regras, comportamentos, gostos, relacionamentos. e tudo o que absorvemos passa a fazer parte do que somos. mais. somos apenas o que conseguimos absorver. se, mal nascêssemos, conseguíssemos isolar-nos de tudo, não seríamos nada. ou o pouco que seríamos não chegaria para sermos considerados indivíduos. nunca aprenderíamos a comunicar - não haveria necessidade de comunicação nem ninguém com quem aprender essa habilidade -. não saberíamos nunca o que é entregar-nos a alguém...

mas este isolamento é verdadeiramente impossível e o que somos depende única e exclusivamente da quantidade de elementos externos aos quais fomos submetid@s enquanto seres vivos pensantes. como uma imensa e incrivelmente absorvente esponja, interiorizámos tudo aquilo que, por muito leve que tenha sido, passou por nós e deixou a sua marca.

e, quando o nosso por-do-sol chegar, sentir-nos-emos uma frondosa árvore, na qual todas as nossas memórias estarão penduradas como bolas que a enfeitam...

segunda-feira, 7 de abril de 2008

14. noites intermináveis



a noite é muitas vezes um estado de espírito por si só. podemos estar em pleno dia, duas da tarde de um dia de sol magnífico, e sentir em nós uma noite escura e fria.

este blog tem visto alguns dias de noite. a actualização não tem sido a mais desejada, muito por culpa da convencida da inspiração: tem estado muito em baixo, coitada. isso, a juntar a outra sua amiga, a falta de tempo, faz com que seja pouca a manutenção deste sítio.

tentemos fazer com que isso mude.

a noite estava fria, mas convidativa. apenas algumas luzes salpicavam o horizonte e espalhavam o seu reflexo no rio, calmo como um espelho. algumas nuvens ameaçavam, mas não cumpriam. a noite estava destinada a não ser molhada.

passo aleatoriamente por este cenário, comum a muitas outras noites e muitos outros dias, e a fotografia urge. é hoje. não há razão aparente para que a foto seja tirada hoje em detrimento de todos os outros dias e todas as outras noites em que passei aqui e a objectiva não captou o que a iris estava a captar. apenas uma conjuntura que me leva a tirar esta foto aqui e agora. esta mesma fotografia foi tirada centenas de vezes anteriormente, mentalmente. já estava praticamente feita. já existia num espaço mental impossível de materializar. por isso existem as câmaras fotográficas - para que uma pessoa possa mostrar aos outros a imagem que viu e que quer partilhar.

e em noites como estas os olhos guardam tantas imagens...